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  • Incorporação

    Para ser indivíduo, indivisível.

    É preciso não se desviar do fluxo da vida.

    Este só existe como movimento, no aqui e no agora.

    E é sempre original.

    É preciso calar completamente

    Para vibrar na sua ultrarealidade.

    É preciso se abandonar e confiar que

    Somos parte e o mesmo.

    Somos manifestação

    De uma poderosa força

    Que assim como a gravidade,

    Atravessa dimensões.

    O fluxo de vida é psíquico.

    Ou poeticamente,

    Espiritual.

  • Distopia

    À beira-mar eu caminhava sobre a areia branca.

    E espumas de ódio chegavam aos meus pés.

    Eu recuava em oposição ao mar,

    E elas recuavam também.

    Mas sempre voltavam.

    E a cada retorno, tingiam de cinza-chumbo-medo as areias,

    E traziam consigo memórias do além-mar:

    Um carrinho de brinquedo,

    Um laço de fita,

    Um poema,

    Uma fotografia,

    Um abraço interrompido.

    Para em seguida engoli-las definitivamente.

    Em algum lugar elas resistiram? Em algum tempo elas existiriam?

    As pessoas se banhavam nas espumas de ódio com bastante alvoroço.

    Via de longe seus olhos arregalados e suas bocas se movendo.

    Parece que falavam de pátrias, de párias, de malditos outros que não deveriam isso ou aquilo.

    E a cada memória engolida, elas davam tiros atômicos para o alto, rindo e espumando.

    Rindo e espumando.

  • Ísis e a serpente

    Ísis, uma das deusas mais importantes do panteão egípcio e uma grande feiticeira, tem estreita relação com as serpentes. Em um dos mitos, ela cria a primeira serpente do mundo e a deixa no caminho de Rá. Este, picado e condenado a morrer, se vê obrigado a compartilhar seu verdadeiro nome para ser salvo. Por isso, quando alguém era picado por cobras, pedia à Isis que a livrasse do veneno.

    Disse Rá: Uma criatura mortal me feriu. Meu coração o pressentiu, mas não sei do que se trata, porque meus olhos não puderam vê-la, nem minhas mãos puderam tocá-la. É desconhecida entre tudo que eu criei. Nunca senti tal dor, não conheço nada tão mortal. 

    Essas referências não eram conhecidas quando batizei minha querida fila de Poderosa Isis, nome de um seriado dos anos 70 que eu gostava bastante quando criança e que brotou na minha mente nos primeiros segundos de contato com aquele bebê canino enorme e afetivo, pelo dourado e íris cor de mel, que cresceu e se tornou uma jovem forte, minha guia e guardiã, circundando minhas pernas como uma felina, impedindo ou estimulando meu caminhar.

    Não presenciei seu encontro com esta singular serpente que colocou um fim à sua vida. Mas a imagino assim, encolhida nos encontros das pedras do córrego que circunda nossa aldeia, pronta para lançar o veneno mortal, ameaçada pela sua presença. E em poucos segundos, a sentença já estabelecida, a vejo rastejando de volta à escuridão.

    Não roguei à Isis sua salvação, pois nada sabia sobre esse poder. Imagino, no entanto, que tenha sido ela que te quis de volta, talvez sua missão comigo tenha chegado ao fim.

    Sua partida foi tão inesperada quanto sua chegada e arrancou do meu mundo toda a cor, toda a certeza, toda a fé em sentidos e propósitos. Maldisse a vida e a morte. Fechei os ouvidos a tudo que pudesse vir desse mundo de mistério para tentar me consolar. Me ative à revolta como um bálsamo.

    Não mais te seguirei nos caminhos, não mais me receberá na porteira da nossa terra, aflita, queixosa. Não mais deitará no meu colo nas manhãs de sábado, longamente. Não mais.

    Que destino é esse, o do humano, consciente das chegadas e partidas, dos esforços repetidos, das ambições inúteis, de todas as vidas caminhando em uma corrente que nunca para, cujo fim é o nada? E ainda assim, obrigado pelos instintos, imagina ficções e necessidades para levantar da cama e cumprir mais um dia de propósitos vazios, mesmo quando a dor é tão grande, que o melhor seria desistir de todo o movimento.

    Mas assim é: temos sede, temos fome, temos outras conexões que exigem vida em nós, que exigem o heroísmo de viver uma vida absurda – amando, desesperadamente, sempre amando.

  • A.M.R

    Era um dia ensolarado em Petrópolis, no ano de 1987.

    Eu tinha quinze, quase dezesseis anos quando te conheci.  Não consigo me lembrar se isso foi antes ou depois daquela aula de história sobre a ditadura, acredito que tenha sido depois.   Tenho certeza, no entanto, que foi depois da minha dieta macrobiótica, porque naquela reunião eu já não era aquela gorda que os queridos colegas de colégio chamavam de baleia e portanto, depois de ter lido o livro da Eliane Maciel, Com Licença eu Vou à Luta.   

    Essa certeza eu conquistei recentemente, à duras penas.    Tento inutilmente resgatar a precisão da ordem dos fatos na minha memória daqueles tempos,  seria importante lembrar exatamente o que aconteceu neste e nos dois anos seguintes, seria útil ao meu propósito mas também bonito, porque foi o tempo em que eu “desabrochei para a madrugada”, como diria o poeta.   Mais tarde retorno a essa poesia, você lembra dela e de como sem saber, elogiamos, num palco, nosso futuro e nossa ruína?

    Bom, neste dia, fui, por iniciativa própria e sem conhecer ninguém a uma reunião do movimento estudantil secundarista e lá estava você.  Não sei o que você fazia ali, já que cursava a faculdade de sociologia, no Rio de Janeiro. não era estudante de segundo grau.   Mas também não sei muito bem o que eu estava fazendo ali, suponho que procurava mudança e respaldo para uma nova identidade que se construía, após uma triste descoberta que havia me virado a cabeça.

    Sim, você conheceu uma alma inocente, selvagem e ferida, prestes a explodir.   Deve ter te fascinado, ver assim, à sua frente, uma matéria prima tão bruta, num rosto de menina com traços masculinos, olhos vivos e atentos, ávida de revolta e cheia de desprezo.   

    Já você, pareceu-me muito seguro de si e por alguma razão, não parava de me olhar.  Ao final da reunião, se apresentou com muita naturalidade, puxou conversa, apresentou alguns amigos e me convidou para acompanhá-los, esticando minha presença.  E foi simples assim: algumas reuniões e assembleias depois, fui acolhida no seu mundo de utopias, em que pessoas inteligentes, artísticas, cidadãs e politizadas lutavam pela revolução nas horas vagas.  

    (Olhando em retrospectiva, os encontros são sempre enigmáticos, não acha? O momento em si, vivemos como algo acidental e pouco significativo, não fazemos a mínima ideia de como ele vai se desdobrar, o quanto vai transformar nossas vidas. Mas depois que tudo acontece, sempre nos perguntamos, onde terminou o acidente e onde começou o destino, se tudo poderia ser evitado ou se já estávamos condenados a viver o que foi vivido).

    Gostaria de poder lembrar melhor do passado, todo ele, claramente, cada detalhe, um roteiro linear de acontecimentos, sínteses, aberturas e fechamentos.   Mas confesso que este não é o meu forte, ao contrário, sempre fui mestre em esquecer, apagar, virar a página, me reinventar e seguir em frente.  Ainda assim, porque cheguei em um ponto onde é preciso compreender, hoje me esforço e desse esforço, você me apareceu como um fantasma, como uma entidade.    Em trinta e seis anos não me recordei nunca, era como se você não tivesse existido na minha vida.   Mas então percebi que você existia, só que incorporado em mim, por assim dizer.   Em certo sentido, eu me apropriei de uma essência sua e ela se tornou parte do que eu fui, e por isso, você não era outro a ser recordado, mas eu mesma vivendo uma vida, não a que você me preparou para viver, mas outra, à deriva da sua mas ainda assim interconectada, sem que nem eu mesma soubesse.      

    Por exemplo, vivendo no Rio de Janeiro, me dei conta agora, recordando, de que frequentei o IFCS, como se ali fosse um ambiente meu.  Visitava o prédio, subia as escadas, frequentava a biblioteca, avistava uma sala-auditório e até levava pessoas comigo e aquele lugar nunca me trouxe uma lembrança sua, o que é uma loucura, hoje eu sei.  

    No ato de recordar, quer dizer, no ato de voltar a passar a memória pelo coração, a sua alteridade saltou à minha frente e fui tomada de um fascínio.   Quem seria você no presente?  Onde viveria? O que faria?  

    Graças a world wide web, e à minha habilidade e persistência, algumas coisas consegui saber.   Você seguiu a vida acadêmica, como desejava, tem uma família, escreveu um livro e é professor. Morou no exterior e hoje mora na Paraíba.  As suas fotos públicas te mostram sério, outras te mostram sorrindo. E até sua querida foto criança com uniforme de colégio que eu vi ao vivo e no papel fotográfico,, agora está aí, na www, para qualquer um que queira te stalkear, até mesmo eu, a persona non grata da sua vida.   

    Imaginando quem você se tornou, me vi no lugar que o seu desejo me colocou um dia, como coadjuvante qualificada da sua carreira, como a companheira referenciada em suas obras, te apoiando com muita paciência e carinho, como as mulheres que efetivamente fizeram isso por você.  Um destino simples, amoroso, limpo, certo, tudo em ordem e na hora certa, como convém a um homem de pensamento.   O mais interessante foi sentir uma nostalgia dessa vida que eu nunca quis e não poderia querer viver, porque não caberia na inquietude da minha alma imoral.   Mas confesso que me fiz a pergunta: teria sido meu destino menos trágico?

    A.M.R, nada disso importa, sei bem.  É um exercício inútil e não tenho pretensões de alcançar nada.

    Depois dessas palavras, só me restará te esquecer novamente, mas agora sabendo que esses dois anos foram vividos, foram reais e foram meus também, fazem parte da minha história e que aquela garota do álbum de noivado sou eu.

    Fui exposta a muitas coisas nesse intensivão de cidadania que foi nosso namoro:  filmes, livros, ideias, ideais, ações, viagens.   Realizamos feitos incríveis, como foi aquele festival de poesia.  Vibramos juntos, de mãos dadas, o discurso do Lula na Cinelândia. Vibramos juntos, de mãos dadas, a queda do muro de Berlim, na TV da sala da sua casa.  Vivemos juntos a experiência de sermos inexperientes no amor e vibramos juntos, com os corpos unidos, essa sorte.

    Tardiamente, quero dizer que você foi o meu primeiro amigo na vida e um dos mais importantes, a primeira pessoa que teve apreço e interesse pelo que existia na minha subjetividade.    Através de você, tive acesso a uma família afetiva, alegre, que transbordava bondade e confiança e que nos momentos mais estranhos, foi um porto de luz, um alicerce contra toda a violência e desencontro que eu enfrentava na minha própria família.   

    Sei que por tudo isso, deveria ter sido mais grata ao final, deveria ter retribuído a sua amizade.  Mas não foi assim. Ao contrário, fui cruel, fui vil.

    A inocência tem um lado perigoso e você não percebeu os sinais do tecido esgarçado.    Sendo tão amado, não entendeu a extensão dos danos que o desamor pode causar em alguém. 

    Te deixo agora, com a ausência e as bachianas brasileiras ao fundo. 

    Como poderia imaginar, naqueles anos, ao escolhê-la para nosso dueto, que caberia tão bem para falar da nossa história de amor?

    “Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces

    Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.

    No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida

    E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.

    Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.

    Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados

    Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada

    Que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.

    Eu deixarei… tu irás e encostarás a tua face em outra face.

    Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.

    Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.

    Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.

    Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.

    E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.

    Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.

    Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.

    E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.

    Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.”

  • O primeiro caminho

    é o caminho da verdade.

    Um dia, uma fagulha captura nossa consciência e não podemos mais desviar dela.

    Enxergamos uma face nossa que estava oculta nas sombras,

    rejeitada, encarcerada mas pulsante, viva.

    E ela quer acertar contas.